Releitura do quadro 'O Grito', de Edvard Munch, em tempos de pandemia. Foto: Divulgação/ Rede Marista de Colégios.
A pandemia, em curso, atinge brutalmente nosso psiquismo pelo seu poder traumático de fissura e sombreamento de nossas imagens narcísicas causados pelo encontro com o horror de um Real que existe em cada um de nós, por mais que tentemos, à muito custo, mantê-lo acorrentado bem longe dos nossos olhos. Do pavor de um estilhaçamento de uma imagem adorada de quem somos e do mundo que vivemos, nos vemos no risco de afundarmos no insuportável oceano da angústia ou adentrarmos na apavorante e inóspita selva dos sintomas psíquicos. A bóia de salvação ou a trilha para desviarmos do enlouquecimento deve passar necessariamente pela inscrição simbólica, nem que seja em parte, desse afeto doloroso que restou do trauma e que resiste em nos deixar.
Mas o que é esse Real que reside em cada um de nós? O Real é tudo aquilo que é fruto de nossas experiências psíquicas, mas que não pode e nunca poderá ser inscrito simbolicamente de forma completa, ficou de fora do nosso registro simbólico - e portanto é impossível de ser acessado diretamente pelas lembranças - mas que fica registrado no inconsciente, mantendo sua energia psíquica que não cessa de pressionar querendo se fazer presente. É do Real que vem nossos impulsos à atos dos quais normalmente queremos evitar, controlar ou eliminar. Atos dos quais normalmente nos envergonhamos e que nos fazem sofrer, apesar de um certo prazer imediato que sua prática proporciona.
E porque a pandemia nos provoca um encontro com o horror desse Real que reside em nós? A pandemia em curso, assim como todas as demais tragédias que afetam o ser-humano, se apresenta como uma experiência traumática que exige simbolização, já que abala brutalmente as certezas construídas, gerando um intenso sentimento de falta de controle, passividade e desorientação, além de questionar os sentidos construídos e que nos servem de alicerce e motor na vida, e, ainda, escancarar nossa fragilidade existencial e promover uma fissura ou distorção nas valiosas imagens construídas de quem somos, nossas imagens narcísicas.
O abalo às certezas construídas causa uma dor muito forte no ser-humano, sendo que quanto mais se é apaixonado por elas, mais estragos esta dor causa. O ser-humano é naturalmente apaixonado por certezas, pois, são elas que nos dão uma certa sensação de segurança e controle. E isso acontece desde que nos entendemos por gente - por exemplo, quando bebês, a certeza de que nossa mãe está por perto e que, por isso, não morreremos de fome é fundamental para um mínimo de equilíbrio psíquico para seguirmos vivendo. E é pelas certezas, ditas ou lidas por nós nas entrelinhas das nossas relações parentais, que criamos as imagens de quem somos e de como vemos o mundo à nossa volta. Portanto, quando nossas certezas são abaladas, fraqueja também muito do que somos e que nos mantém animados à seguir vivendo.
E se pensarmos que vivemos num momento histórico de hipervalorização das certezas, e um forte desprezo por tudo aquilo que sinalize falta ou incompletude, percebemos que o impacto de um evento traumático que abala nossas certezas, como esta pandemia, é muito mais intenso. Nos dias de hoje o discurso da maior parte da ciência e da religião, sem falar da política, são discurso totalitários, que excluem as diferenças, os questionamentos e a subjetividade. O discurso científico positivista prevalente na atualidade, inclusive, pode ser considerado como uma nova religião, já que suas afirmações se apresentam como dogmas.
E o que a pandemia provoca é precisamente um furo nas mais diversas certezas que construímos e sobre as quais sustentávamos nossas vidas. Ela, na verdade, nos lembra que não somos imortais, invencíveis e ilimitados, como acreditávamos. E isso dói, e muito! É a dor inevitável, inadiável e inquestionável de viver, independentemente de quão maravilhosa seja a vida. Sobre esta dor de viver, o que nos resta é a possibilidade de moldá-la, tratá-la criando alguma forma subjetiva de incluí-la na vida (e isso, acreditem, já é muito), pois, tentar excluí-la, negá-la ou adiá-la só aumenta sua potência.
Freud escreve sobre esta dor em um célebre texto chamado O Mal-Estar na Civilização (1929) onde nos fala que, independentemente de quão incrível seja a vida, existem três tipos de mal-estar que são inerentes à condição humana: o relacionamento com outro ser-humano, o envelhecimento e a morte. Tratarei especificamente sobre como a pandemia impacta estes três aspectos da vida em outro momento, mas o que vale notar, aqui, é que a pandemia apresenta uma carga de tensão ainda maior nessas três fontes de mal-estar que cada um de nós já carrega consigo. Ela nos escancara a fragilidade de nossos corpos, a inevitabilidade da morte e, porque não, o quanto é complexo nos relacionarmos com os outros, e o faz isso de uma forma muito particular em função do isolamento - “obriga-nos” a conviver com algumas pessoas em casa (o que tem aumentado, por exemplo, significativamente o número de divórcios desde o início do isolamento social) e a olhar os outros como potenciais riscos à nossa saúde e à vida, ou, ainda, nos lembra o quanto é preciosa a presença corporal dos outros, suas imagens não são suficientes.
Com isso, a pandemia nos revela mais um furo no discurso social em voga na contemporaneidade: a imagem que alçou o patamar de valor máximo não basta, ela capenga como fonte de afeto e prazer na relação com os outros. La Société du Spectacle, escrito por Guy Debord (1967), que o transformou em filme seis anos depois, nos sinaliza um fenômeno do Capitalismo que atinge nos dias de hoje seu ápice: o valor do espetáculo, do aparentar, do parecer, em detrimento do ter e o ser. Ele nos mostra que até a Revolução Francesa de 1789, o valor que circulava no universo social era determinado pelo ser. Ou seja, ser nobre, artesão, camponês ou burguês, por exemplo, determinava seu valor naquela sociedade. Com a Revolução e a tomada do poder pela burguesia, o valor de cada uma na sociedade passa a ser determinado pelo ter. Assim, não importava mais tanto seu título ou quem você era naquela sociedade, mas sim o que você tinha de capital. E isso perdurou até o século passado onde, por inúmeros motivos, o valor social se transforma não mais em quem você é ou o que você tem, mas sim no que você parece ter e parece ser. É a Era do Poder das Imagens, é o que Debord chama de a Sociedade do Espetáculo. E a pandemia parece questionar esse valor supremo do parecer. O que vemos é que as imagens não são suficientes para garantir satisfação. A presença corpórea, o encontro, o toque são insubstituíveis. Resta saber se haverá algum tipo de resignificação deste tipo de valor social contemporâneo.
Outro efeito traumático causado pelo encontro com o Real da pandemia é a visão da sombra da morte. No atual cenário, nos vemos cercados pela morte como numa trincheira de campo de batalha, onde assistimos (pela mídia ou presencialmente) as pessoas caírem mortas à nossa volta, e tentamos nos esconder o máximo possível para não sermos a pŕoxima vítima. A morte está circulando entre nós como um fantasma a nos assustar, se fazendo presente desde as sirenes das ambulâncias que não param de soar sua presença, até as notícias de conhecidos ou não que partiram.
Em um cenário sem pandemia, todos sabemos que ela virá. Como dizem: “é a única certeza da vida”. Mas, até para podermos seguir desejando e vivendo, levamos a vida ou como se ela não existisse, ou como se fosse algo bem distante. Exceto, logicamente, quando envelhecemos ou nos encontramos doentes. Mas com a pandemia, ela se faz presente o tempo todo para praticamente todos. E o contato com a morte nos apavora, pois, no caso da nossa própria, ela é irrepresentável (não temos como representá-la previamente). A morte carrega algo do Real porque mesmo sabendo desde cedo que iremos morrer, não temos apoio simbólico aos afetos normalmente dolorosos que ela representa ao nosso eu. Diferentemente do caso da morte das pessoas que amamos, que, por mais dolorosa que ela seja (e em alguns casos essa dor é inextinguível), esta é tratada pelo luto, que é um processo psíquico que tenta fazer uma inscrição simbólica do trauma causado pela perda do ser amado. A pandemia, portanto, retira o véu que nos faz crer que a morte está sempre um pouco distante, que ela é sempre futura, véu este que para alguns é feito de tecido mais fino, e para outros é bem mais grosso. Ela traz a morte para o aqui e agora, tornando impossível não vê-la pelos cantos da vida.
Porém, a morte apresentada pela pandemia não é “apenas” a corporal. Ela ameaça matar, também, o precioso conjunto de imagens que construímos de nós mesmos a partir de nossas experiências e das imagens que captamos e supomos que os outros tem (especialmente nossos pais) de nós. São a partir dessas imagens que construímos o que chamamos de eu, essa parte prioritariamente (mas não só) consciente que temos de nós mesmos. O eu (ou ego) representa, portanto, precisamente as imagens construídas que temos de nós e que definem quem somos.
O que vemos nesta experiência de pandemia é que muitas vezes nossas imagens narcísicas trincam, como um cristal valioso que sofreu um baque forte e repentino, e deixa visível a impossibilidade de sustentar aquela imagem “completa” de antes. Nossas auto-imagens de força e controle do mundo, nossas sensações fantasiosas de infinitude, nossos delírios de poder infinito do pensamento ou do dinheiro, nossas crenças inabaláveis no racionalismo positivista sofrem rachaduras. E somos sinalizados de que todas estas coisas são, na verdade, construções imaginárias realizadas muito precocemente em nossas vidas e sobre as quais nos apoiamos para tentar viver da melhor forma possível, mas que não garantem nada, muito menos um constante estado de bem-estar e segurança.
Portanto, a pandemia tem um efeito traumático em nós porque nos aproxima da morte, trinca nossas imagens de quem somos, faz um furo em nossas certezas apaziguantes e esfumaça a visão dos sentidos que havíamos estabelecido para direcionar nossas vidas. Porém, o efeito traumático depende do que encontra já estabelecido, funcionando em cada um de nós, ou seja, de como viemos lidando com as experiências que nos afetam desde que nascemos. Freud (na sua 22a. Conferência Introdutória da Psicanálise, em 1916), nos fala que o sintoma psíquico é fruto de uma série complementar, uma conjugação de três fatores que nos afetam: 1) aquilo que nos antecede ou que já trazemos ou encontramos ao nascermos (genética, cultura, momento social, lugar desejado para nós por nossos pais); 2) as experiências afetivas que experimentamos nos primeiros anos de vida e que servirão de base para o nosso psiquismo; e 3) a sorte ou azar que nos faz vivenciar situações que outros não vão vivenciar. Em suma, cada nova experiência que vivemos (como a pandemia) se liga à aspectos psíquicos anteriores, e é isso que determinará a intensidade do seu efeito traumático.
Em fato, a pandemia tem um efeito de abrir a porta de nosso inconsciente fazendo surgir nossos fantasmas escondidos que tentávamos, sem saber, mantê-los bem distante de nós, e eles nos assustam porque não puderam ser inscritos, incorporados simbolicamente em nosso psiquismo. Portanto, o trato possível para a dor psíquica que experimentamos nesse momento deve passar, necessariamente, por buscarmos simbolizar estas experiências apavorantes que nos afetam, tratá-las pela fala com um analista, que é quem pode criar as condições necessárias de se ouvir o que está gritando em nós nesse momento de silêncio da vida concreta imaginária.
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