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AS PAIXÕES DO SER EM TEMPOS DE UM CAPITALISMO DIGITAL.

Autor: Alan Braga de Paula.


Lanço uma pergunta: o capitalismo sobre o qual Lacan se debruçou para desnudar o tipo de discurso que ele apresenta é o mesmo capitalismo que vivemos nos dias de hoje, com o surgimento da Era Digital, seus robôs e algoritmos? Caso não seja, caso este mesmo capitalismo tenha adquirido uma nova roupagem, seria o discurso do capitalista, como apresentado por Lacan em 1972, suficiente para compreender e desnudar o tipo de laço social do capitalismo digital? Ou seria necessário promover um trabalho de elaboração de uma variante para o discurso do capitalista, como Lacan fez em relação ao discurso do mestre, considerando que a dominação do mestre contemporâneo digital já não é a mesma do mestre capitalista clássico?

Parece inquestionável que vivemos uma nova forma de dominação do mestre capitalista moderno com o surgimento das tecnologias digitais, das redes sociais e seus robôs e algoritmos: o mestre contemporâneo digital. Afinal, como muito bem denuncia o documentário “O Dilema das Redes” (2020), dirigido por Jeff Orlowsky e exibido pela Netflix, nosso mundo é hoje dominado pelos grandes conglomerados tecnológicos que manipulam e determinam a veiculação de informações, produtos e relacionamentos sociais, também comercializados como qualquer outro produto. De notícias políticas à escolha de parceiros amorosos, passando pela divulgação do seu serviço de psicanalista online até a escolha de um restaurante, tudo é manipulado e determinado por estes conglomerados. Isso sem falar nas criptomoedas e no metaverso.

Por outro lado, este novo arranjo capitalista promovido pelas inovações tecnológicas produz e manipula informações travestidas de verdades, mas que de fato dividem ainda mais o sujeito em bolhas de pseudoverdades criadas de acordo com o desejo de cada um, oferecendo cardápios de grupos para enodarem estas verdades consumidas, fortalecendo as identificações grupais em ilhas de saberes e polarizações de escolhas de amarrações libidinais que enfraquecem e colocam em risco os laços sociais.

Assim, se as relações capitalistas não são as mesmas de 50 anos atrás, não seria razoável analisarmos se o modelo criado por Lacan para desnudar o discurso capitalista não carece de um novo arranjo que dê conta de tais mudanças?

Analisemos a variação ocorrida do discurso do mestre para o discurso do capitalista na figura abaixo:


De acordo com Badin & Martinho (2018):

”neste discurso, não há relação entre o agente/semblante e o outro/gozo, por isso não faz laço social. O que se verifica é um endereçamento dos objetos de consumo, produzidos pela ciência e tecnologia (a) ao sujeito ($), foracluindo assim o laço social. No discurso do capitalista, o sujeito passa a ser reduzido a um consumidor, enquanto o objeto causa de seu desejo se torna um gadget - que ocupa a posição do outro do discurso capitalista. Pode-se afirmar assim que o saber (S2) deste discurso é o da ciência/tecnologia; enquanto o significante-mestre (S1), o poder, é o capital.”


À primeira vista, os conglomerados tecnológicos se encaixam perfeitamente no discurso do capitalista como o conhecemos. No lugar da verdade encontramos os conglomerados tecnológicos com seu imperativo de gozo, de consumo de produtos (e aqui tudo parece ser produto, desde os diretamente tecnológicos digitais, como computadores, smartphones, acesso de dados de navegação, até roupas, comida, sexo, notícias, educação, terapias..., etc), que se direciona à ciência para produzir inúmeros gadgets tecnológicos para serem vendidos ao sujeito consumidor insaciável com a promessa de completude, e que pelo fato deste sujeito por estrutura não poder ser saciado, ocasiona o consumo compulsivo.

Mas qual a novidade que observamos no discurso capitalista com as inovações digitais produzidas pela ciência? As inovações produzidas pela ciência à serviço dos conglomerados tecnológicos criaram robôs e algoritmos que captam, armazenam, manipulam e capitalizam o consumo dos gadgets com um grau de precisão ainda não visto. Assim, o sujeito barrado deixa de ser “somente” sujeito consumidor compulsivo, e passa a ser usado também como escravo que produz conteúdo sem cessar e sem ganhar nada por esse trabalho (afinal a grande maioria dos consumidores concorda com o compartilhamento de seus dados como forma de utilizar os serviços) produzindo ainda mais mais-valia, expropriando ainda mais gozo desse sujeito que goza produzindo mais-valia.

Desta forma, esse objeto a, além de ser objeto de consumo, como um computador ou jogo, é um objeto que coloca o sujeito como servo não somente do consumo, mas também de produção. O sujeito é ao mesmo tempo consumidor e trabalhador expropriado do gozo de seu trabalho. Sendo assim, penso que seria importante no grafo do discurso do capitalista acrescentar um vetor que siga de $ para S2 para sinalizar exatamente que o objeto de consumo ao passar pelo sujeito barrado retorna ao S2 - na forma dos robôs e seus algoritmos - retroalimentando produtivamente sem cessar (e sem o sujeito ganhar nada com isso) o sistema de dominação capitalista e a expropriação dupla de gozo do sujeito. O grafo ficaria assim:



Pensar estas particularidades do discurso capitalista impostas pelas inovações tecnológicas parece-me de suma importância na análise e desvelamento de fenômenos contemporâneos relativos às paixões do ser, como a criação de bolhas de conhecimento, polarizações políticas extremas e fake news. É notório no cenário social contemporâneo a manipulação pelo discurso capitalista digital, através de suas novas tecnologias, das informações que são apresentadas como verdades, servindo de base para tomadas de decisões políticas e afetos compartilhados em bolhas identificatórias excludentes do que é infamiliar, discordante. Podemos pensar, portanto, que talvez exista uma nova forma de dominação e manipulação das paixões do ser, onde se pode planejar através de robôs e algoritmos em quem, de que forma e sobre o que queremos produzir paixões na forma de amor, ódio e ignorância.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


1. Lacan, J. (1972). Conférence à l'université de Milan. Disponível em: <http://espace.freud.pagesperso-orange.fr/topos/psycha/psysem/italie.htm>. Acesso em: 12 set. 2022.

2. O DILEMA DAS REDES. Direção: Jeff Orlowsky. Produção de Exposure Labs, Agent Pictures, Argent Pictures et al. Estados Unidos: Netflix, 2020. Netflix.

3. BADIN, R.; MARTINHO, M. H. O discurso capitalista e seus gadgets. Trivium vol.10 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2018. Disponível em http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2018v2p.140. Acesso em: 16 set. 2022.

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1 opmerking


Luanna Matos
Luanna Matos
15 nov 2022

Parabéns Alan pelo seu artigo, que venham mais e mais ...👏🏻👏🏻👏🏻

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